Lideranças indígenas ouvidas nesta quarta-feira (23) no Senado disseram que uma eventual aprovação, pelo Legislativo, do marco temporal para demarcação de terras indígenas seria, além de inconstitucional, um rompimento do país com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o país é signatário.
A Convenção 169 trata da definição sobre quem são os povos indígenas e tradicionais, e ainda elenca uma série de obrigações dos governos, no que se refere a reconhecimento e proteção de valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais desses povos.
“Esta audiência não deve ser vista como a consulta prevista na Convenção 169 da OIT, que prevê consulta prévia aos povos indígenas para a definição de quem são os povos indígenas e tribais”, disse o Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna, logo na abertura da audiência da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado.
Produção Indígena
Karipuna disse que há muito desconhecimento, por parte dos não indígenas, sobre o modo de vida e, também, de produção dos povos indígenas. “Ao contrário do que se diz, os povos indígenas produzem, sim, em seus territórios”, disse ele, ao usar como exemplo a produção de açaí, por algumas etnias.
Presidente da Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti, Nambikwara e Manoki, Arnaldo Zunizakae defende que as políticas voltadas aos povos indígenas precisam ir muito além da questão da demarcação e abranger também proteção e gestão territorial, inclusive em termos de financiamento especial a produção em territórios indígenas
“Dizem que o marco temporal vai ajudar os indígenas a produzirem, mas não há nada no texto que preveja financiamento especial para nossos povos produzirem. Não temos condições de buscar acesso a crédito. Falta garantia real para nos darem acesso a crédito”, disse Arnaldo Zunizakae.
“Por isso precisamos ir além da questão de demarcação e discutir também políticas para vivermos com dignidade. Vamos lutar como indígenas para garantir as demarcações que faltam. O marco temporal é preocupante porque não considera os indígenas que tinham sido expulsos por grileiros. Precisa de estudo sério para saber se a terra é sagrada e para saber se havia indígenas lá”, acrescentou.
Marco temporal
Segundo a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, o projeto de lei que trata do marco temporal (PL 490/2007, que após aprovação pela Câmara passou a tramitar como PL 2.903/2023 no Senado) é inconstitucional.
“Existe nele um vício legislativo, que é você colocar uma interpretação; uma inovação; uma emenda. Digo emenda porque a proposta do texto faz alterações nos dispositivos constitucionais. Essas alterações não poderiam ser aprovadas por meio de lei ordinária”, disse a presidenta da Funai.
Ela explica que além de afetar os direitos fundamentais dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de suas terras, o texto, se aprovado, dá “uma nova roupagem em relação às indenizações de boa-fé e impõe um marco temporal a partir do dia 5 de outubro de 1988. Ou seja, ele altera a nossa Constituição no artigo 231”, argumentou
Vício legislativo
“Isso é um vício legislativo que não deveria ser tratado numa lei ordinária que requer um quórum mais simples. Deveria requerer uma PEC [Projeto de Emenda Constitucional], que tem uma garantia a mais, por ter de ser discutida em dois turnos e em quórum mais apropriado e absoluto”, complementou a presidenta da Funai.
Outro ponto citado por Joenia Wapichana é o de que o marco temporal fere a vedação do princípio ao retrocesso. “Um princípio que hoje nós discutimos é a vedação do princípio ao retrocesso social. Ou seja, a possibilidade de marcar ou de alterar procedimento de demarcação em terras indígenas que esteja em curso”.
Para Wapichana, a tese do marco temporal fere o princípio dos direitos originários; modifica o conceito de terra e o princípio da imprescritibilidade e da indisponibilidade, a partir do momento que flexibiliza o usufruto exclusivo, fazendo com que o direito de consulta prévia informado seja inferiorizado em termos de novos empreendimentos e entradas de invasões ou sem qualquer direito à consulta.
Ela destacou, também, a possibilidade prevista de expropriação de terras indígenas por alteração de traços culturais. “Isso tudo está no texto do PL 2.903, que de uma forma bastante agressiva, quando se fala de terras reservadas, coloca em questão a própria identidade dos povos indígenas – que é garantida pela Constituição”.
Segurança jurídica
Para Osmar Serraglio, então ministro da Justiça na gestão de Michel Temer, o marco temporal garante uma interpretação estável da legislação. Segundo ele, a tese foi reforçada com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009. “O STF é quem interpreta a Constituição. Ele tinha um episódio em que precisava definir a concepção da Constituição, e construíram uma lista de condicionantes. Os tribunais têm que ter jurisprudência estável. Não é dizer uma hora uma coisa, depois outra”, disse Serraglio.
Na avaliação do secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, o marco temporal pode provocar mais insegurança jurídica e mais conflitos por terra no país. “Da forma como caminhamos, estamos nos afastando da construção de consensos, jogando fora uma sinalização do Executivo para o diálogo e aprovando algo que vai dar origem a uma enorme batalha jurídica. Vamos conviver com a insegurança de que gostaríamos de nos livrar”, afirmou.