Afetos nos afetam

Um ponto de ônibus, o sol na cara e um quengo igual a um vulcão em erupção. Provavelmente, uma frase de Arnaldo Antunes defina o que acontecia lá dentro daquele juízo: *“Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva”.

Afinal, era somente todo aquele rebuliço sentimental, mental, emocional mesmo ou apenas o sol do pingo do meidia comendo o resto do juízo que ainda lhe restava? Se agarrou com a segunda opção, já que não queria “morrer queimada” naquele calor escaldante num ponto de ônibus que tem de tudo, menos proteção, segurança e respeito ao cidadão.

Como viu que tinha uma sorveteria bem na frente, não contou conversa. Decidiu fazer algo inédito. Tomar sorvete na hora do almoço. Atravessou a rua e pediu uma casquinha com uma bola. Delícia de abacaxi. Era tudo o que precisava. Era o doce do afeto que, em seguida, veio em forma de respeito ao outro. De atenção.

Assim que ela entrou na loja, um vendedor se aproximou e desempenhou muito bem o seu papel. Mas, “vendeu” muito mais do que sorvete. Deu atenção. Além da iguaria, falar do que o coração tava cheio era tudo o que precisava. Uma decisão a atormentava e, embora, não quisesse atrapalhar o trabalho do outro, o que ele ouviu foi o suficiente pra ela se sentir aliviada.

Mais calma, foi saindo, quando chegou uma mulher que chamou bastante a sua atenção. Aparentemente (a gente tem mania de julgar pela aparência), com sofrimento na alma. Cabisbaixa, entrou e comprou casquinhas. Certamente, faz sorvete pra vender (novamente, o julgamento). Pagou e, antes de sair, se aproximou do mesmo vendedor que atendia a primeira mulher e disse:
– Me desculpe, mas, só queria agradecer pelo atendimento. Me fez muito bem e chega tô alegre. Tem loja que eu chego e a pessoa nem olha na minha cara, principalmente, porque sou dessa cor – disse apontando pro braço (ela era negra). Mas, o que mais chamou a atenção é que ela falou quase chorando. Quanto desrespeito deve tê-la acompanhado até aqui e quantos mais virão a acontecer?

A indefinição da primeira mulher diante de uma decisão – que também não deve ser ignorada -naquele momento, ficou tão pequena e, quando menos se esperou, a segunda mulher já tava mostrando o álbum de fotos da família e rindo, revelando os seus poucos dentes. Mas, somente a seguir, desnuda do preconceito e aconchegada pelo carinho, atenção e afeto, compartilhou o que definia o maior sofrimento da sua alma. Tinha acabado de perder uma filha com 18 anos.
Neste momento “Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva”.

*trecho da música “Socorro” de Arnaldo Antunes

O humor sempre esteve presente na minha vida. Desde criança. Afinal, sou filha de pais bem munganguentos. Até hoje, pra onde me bulo, vejo uma coisa engraçada. Mesmo nos momentos mais sérios. Há oito anos, resolvi “empacotar” esse humor orgânico e botar “à venda”, em forma de standups, textos, crônicas, podcasts e vídeos postados nas redes sociais. No insta: @_romye e no youtube: Romye Schneider. Divido tudo isso, com o jornalismo, profissão que amo e exerço há 30 anos.

6 COMENTÁRIOS

  1. Afeto é o melhor presente para qualquer pessoa. Mesmo a mais carrancuda, se derrete. Parabéns, minha amiga linda, pela sensibilidade que transborda nesse texto ❤️

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